domingo, 6 de agosto de 2017

Tranfiguração do Senhor

Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona (norte de África), doutor da Igreja 
Sermão 78. 

«Nós ouvimos essa voz, que Lhe foi dirigida lá do Céu, quando estávamos com Ele no monte santo» (2Pd 1,18)

«Senhor, como é bom estarmos aqui!» Cansado de viver no meio da multidão, Pedro acabava de encontrar a solidão no alto do monte, onde a alma se alimenta de Cristo. Porque haveria de deixar aquele local e de voltar às fadigas e aos sofrimentos, ele que ardia de um amor santo por Deus e dessa maneira santificava a sua vida? Pedro queria aquela felicidade, embora tivesse acrescentado: «Se quiseres, farei aqui três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias». [...] 

Pedro desejava três tendas; a resposta vinda do Céu demonstrou que só temos uma: o Verbo de Deus é o Cristo, o Verbo de Deus está na Lei, o Verbo de Deus está nos profetas. [...] Quando a nuvem os envolveu a todos, e formou, por assim dizer, uma única tenda sobre eles, dela saiu uma voz. [...] Aquele que a voz revelava é o mesmo em quem a Lei e os profetas se gloriavam: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus toda a minha complacência. Escutai-O». Porque O escutastes nos profetas, O escutastes na Lei, e onde foi que não O ouvistes? A estas palavras, os discípulos caíram por terra. [...] 

Ao caírem por terra, os apóstolos simbolizam a nossa morte [...], mas, ao erguê-los, o Senhor simboliza a ressurreição. E, depois da ressurreição, de que serve a Lei? De que serve a profecia? A partir desse momento, Elias e Moisés desaparecem. O que resta é: «No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus» (Jo 1,1). Resta-te o Verbo, para que Deus seja tudo em todos (1Cor 15,28). [...] 

Desce, Pedro. Tu desejavas descansar no monte [...] e eis que o próprio Senhor te diz: «Desce para sofreres e servires neste mundo, para seres desprezado e crucificado neste mundo. A vida desceu para ser levada à morte, o pão desceu para suportar a fome; o caminho desceu para se cansar caminhando, a fonte desceu para suportar a sede, e tu recusas-te a sofrer? Não procures o teu proveito. Pratica a caridade, anuncia a verdade. Alcançarás, então, a imortalidade, e, com ela, encontrarás a paz.»




sexta-feira, 7 de julho de 2017

Prefiro a misericórdia


Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona (norte de África), doutor da Igreja.
Comentário sobre a primeira carta de João, § 8,10


Ao amares o teu inimigo, desejas que ele seja para ti um irmão. Não amas o que ele é, mas aquilo em que queres que ele se torne. Imaginemos um pedaço de madeira de carvalho em bruto. Um artesão hábil vê essa madeira, cortada na floresta; a madeira agrada-lhe; não sei o que quer fazer dela, mas não é para a deixar como está que o artista gosta dela. A sua arte faz com que pense em que é que se pode transformar essa madeira; o seu amor não é dirigido à madeira em bruto: ele ama o que fará com ela e não a madeira em bruto. 

Foi assim que Deus nos amou quando éramos pecadores. Na verdade, Ele disse: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes». Ter-nos-á Ele amado pecadores para que permaneçamos pecadores? O Artesão viu-nos como um pedaço de madeira em bruto, vindo da floresta; porém, o que Ele tinha em vista era a obra que nela faria e não a madeira em si, nem a floresta. 

Contigo passa-se a mesma coisa: vês o teu inimigo opor-se a ti, encher-te de palavras mordazes, tornar-se rude nas afrontas que te faz, perseguir-te com o seu ódio. Mas tu sabes que ele é um homem. Vês tudo o que esse homem fez contra ti, mas também vês nele aquilo que foi feito por Deus. Aquilo que ele é, enquanto homem, é obra de Deus; o ódio que te tem é obra dele. E que dizes tu para contigo? «Senhor sê benevolente para com ele, perdoa-lhe os pecados, inspira-lhe o teu temor, converte-o.» Não amas nesse homem aquilo que ele é, mas aquilo que queres que ele venha a ser. Assim, quando amas um inimigo, amas nele um irmão.


segunda-feira, 5 de junho de 2017

O dono da vinha - Santa Catarina de Sena

Santa Catarina de Sena (1347-1380), terceira dominicana, doutora da Igreja, copadroeira da Europa 

Diálogo 23

[Santa Catarina ouviu Deus dizer-lhe]: «Toda a criatura dotada de razão possui em si uma vinha, que é a vinha da alma. A vontade, pelo livre arbítrio, é o obreiro dessa vinha durante o tempo da vida; passado esse tempo, já ela não pode ali fazer mais nenhum trabalho, bom ou mau, mas durante a vida pode cultivar a sua vinha, para a qual Eu a enviei. Esse obreiro da alma recebeu de Mim uma força tal, que não há demônio ou criatura alguma que lha possa tirar, se a estes se opuser. Foi no batismo que recebeu essa força e ao mesmo tempo o gládio do amor pela virtude e do ódio ao pecado. Foi por esse amor e esse ódio, pelo amor por vós e pelo ódio ao pecado, que morreu o meu Filho unigênito, por vós derramando todo o seu sangue. E é este amor pela virtude e este ódio ao pecado, que encontrais no santo batismo, que vos dá vida pela força do seu sangue [...].
«Arrancai pois os espinhos dos pecados mortais e plantai as virtudes [...], praticai a contrição, tende desgosto pelo pecado e amor à virtude; recebereis então os frutos do sangue do meu Filho. Não podereis recebê-los se não vos dispuserdes a tornar-vos bons ramos, unidos ao tronco da videira, o meu Filho, que disse: "Eu sou a videira verdadeira, o meu pai é o agricultor, e vós, os ramos" (Jo 15,1.5). «Esta é a verdade. Sou Eu o verdadeiro agricultor, pois toda a coisa que possui ser veio e vem de Mim. O meu poder é insondável e pelo meu poder e a minha força governo todo o universo, pois nada é feito nem ordenado sem ser por Mim. Sim, sou o agricultor; fui Eu quem plantou a verdadeira videira, o meu Filho unigénito, na terra da vossa humanidade, para que vós, que sois ramos, unidos a esta videira, deis fruto».

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

«Os dois serão uma só carne»

São Tiago de Sarug (c. 449-521), monge e bispo sírio
Homília sobre o sexto dia


Façamos o homem à nossa imagem e semelhança», disse Deus (Gn 1,26). Uma simples ordem fez surgir os outros seres da criação: «Haja luz», ou «Haja um firmamento». Desta vez, porém, Deus não disse: «Haja o homem», mas: «Façamos o homem» Com efeito, achou conveniente dar forma com as suas próprias mãos a esta imagem de Si próprio, superior a todas as outras criaturas. Esta obra era-Lhe particularmente próxima; Ele tinha-lhe um grande amor. [...] Adão é a imagem de Deus porque traz a efígie do Filho único. [...]

De certo modo, Adão foi criado simultaneamente singelo e duplo: Eva encontrava-se escondida nele. Antes mesmo de eles existirem, a humanidade estava destinada ao casamento, que os levaria, homem e mulher, a um só corpo, como no início. Nenhuma querela, nenhuma discórdia, se devia levantar entre eles. Teriam um mesmo pensamento, uma mesma vontade. [...] O Senhor formou Adão do pó e da água; quanto a Eva, tirou-a da carne, dos ossos e do sangue de Adão (Gn 2,21). O profundo sono do primeiro homem antecipa os mistérios da crucifixão. A abertura do lado era o golpe de lança sofrido pelo Filho único; o sono, a morte na cruz; o sangue e a água, a fecundidade do batismo (Jo 19,34). [...] Mas a água e o sangue que correram do lado do Salvador são a origem do mundo do Espírito. [...]

Adão não sofreu com a amputação feita na sua carne; o que lhe foi subtraído foi-lhe restituído, transfigurado pela beleza. O sopro do vento, o murmúrio das árvores, o canto dos pássaros chamava os noivos: «Levantai-vos, já dormistes o suficiente! A festa nupcial espera-vos!» [...] Adão viu Eva a seu lado, aquela que era a sua carne e os seus ossos, sua filha, sua irmã, sua esposa. Levantaram-se os dois, envoltos numa veste de luz, no dia que lhes sorria: estavam no Paraíso.